
Quem não tem ciúmes é uma pessoa “bem resolvida”?
Quem não tem ciúmes é uma pessoa “bem resolvida”?
Até o fim desse texto você provavelmente conseguirá responder essa questão! O ciúmes é parte da estrutura psíquica do sujeito. Isso acontece porque a criança, em seus primeiros anos de vida, estabelece uma fantasia de completude com a mãe. Ela imagina que possui todos os atributos que completam tudo o que a mãe deseja. Quando o bebê percebe a entrada de um terceiro, ou seja, quando a mãe começa a retomar a sua vida, e volta o desejo dela para o trabalho, o marido um ou outro filho, por exemplo, acontece o que Lacan chama de intrusão. A intrusão é utilizada para dizer da origem do ciúmes: esse momento em que a criança percebe o desejo da mãe direcionado a outras coisas, e teme a perda do seu primeiro objeto de amor, provocando a dor da primeira perda, e isso faz uma marca de falta, inscreve e constitui o psiquismo.
É crucial como o sujeito irá concluir essa etapa do seu desenvolvimento psíquico, porque apesar destas memórias e sentimentos acabarem recalcadas*, como Freud nos ensina, o infantil sempre habitará no sujeito, e retornará na vida da pessoa. Essa conclusão se trata da forma como o sujeito encontrará de lidar com essa marca da falta em seu psiquismo e que vai se atualizar em suas relações futuras.
Um exemplo de como esse ciúmes competitivo, considerado normal até certo ponto, se atualiza, é quando o sujeito imagina que a pessoa que ama, deseja ao outro e não a ele, porque esse outro tem qualidades melhores, enquanto o próprio sujeito é diminuído.
Surgem questionamentos internos como: O que que ela tem que eu não tenho? O que eu fiz de errado pra ele(a) me deixar? Porque ele segue aquelas horrorosas nas redes sociais? Veja se não é semelhante ao que falamos com o que acontece na infância, em que a criança imaginou que seus pais direcionaram seus desejos para o irmão por este possuir algo que ele não tinha, e não porque esse irmão era apenas um bebê como ele foi um dia e precisou de todos os cuidados. Se estabelece então uma competição e rivalização imaginária com este terceiro.
Outra forma de ciúmes é o projetivo, em que o sujeito realmente desconfia que seu parceiro(a) está traindo, ou ainda que não aconteceu, sente que poderia ser trocado a qualquer momento e vive inseguro. Porém, a razão dessa desconfiança está nas próprias fantasias desse sujeito, provavelmente é ele quem tem o desejo de trair, mesmo que inconsciente, e não consegue lidar com isso. Nesses casos é muito comum os comportamentos abusivos, em que o sujeito passa a exigir provas de fidelidade, invadindo a privacidade do outro, determinando as roupas que poderão ser usadas, as amizades que podem ou não ser cultivadas, ou seja, passa a exigir na realidade que o outro de conta de conter um desejo que na verdade é dele. Seu parceiro(a) muitas vezes então se anula, tentando oferecer essas provas, se colocando num lugar em que não é digno de ser desejado por ninguém. Isso faz muito mal para relação e para esse parceiro(a), que autodestrói sua autoestima e ao mesmo tempo não dá conta da fantasia do sujeito porque ele precisa manter o traidor imaginário na relação, já que não parou de desejar ser infiel.
E uma terceira forma de ciúmes é o delirante, que também é projetivo, mas é uma projeção baseada na certeza da traição, não adianta nem apresentar provas. O sujeito satisfaz a sua própria fantasia através da “traição” irrefutável do outro, não raro, evolui para agressão física.
Retomamos então a pergunta central deste texto, aquele sujeito, que normalmente se acha evoluído, dizendo que não tem ciúmes… Segundo Freud, o pai da psicanálise, essa pessoa sofreu um severo *recalque. Na hipótese deste super recalque ter realmente acontecido isso afetará muito a forma como esse sujeito lidará com as faltas e com o desejo em sua vida. Poderá se tornar um tanto apático em relação ao processo de conquistar o outro, e por o amor estar articulado com o desejo e desafios, esse rebaixamento pode trazer dificuldade em sustentar relacionamentos. Portanto, conseguir ter ciúmes em certa medida é importante para a própria pessoa.
Após essas apresentações não fica difícil identificar quando o ciúme se torna patológico, não é mesmo? O ciúmes pode trazer a sensação de vulnerabilidade em relação ao outro, por isso muitas vezes é visto como desequilíbrio. Mas amar de verdade requer uma dose de vulnerabilidade, só é preciso aprender a lidar com isso.
Será que então podemos em certa medida aproveitar o ciúmes para criar relações mais interessantes? Uma vez que identificamos esse ciúme em nós, como podemos ao invés de competir ou projetar, utilizar como motivação para cuidar da relação? Você sabe lidar com seu ciúmes?
Não vale como resposta provocar ciúmes no outro hein…
Priscila Redder
*Recalque é um mecanismo mental de defesa, em que a pessoa reprime e envia de volta ao inconsciente desejos ou problemas em si que não quer admitir e enfrentar.