
Quem é você? Menina burra…
Adoro a versão de Alice no país das maravilhas do Tim Burton (2010), o filme foi ganhador de dois Oscars por direção de arte e figurino, e recebeu indicação em efeitos visuais. Apesar da crítica considerar que o filme é deslumbrante visualmente, alguns dizem que a sua narrativa é fraca e a história incoerente. Eu discordo, talvez se colocarmos um óculos com as lentes da psicanálise a história não fique tão sem pés nem cabeça assim… Gosto de dizer que essa trama representa a filmagem da análise (processo de tratamento psicanalítico) de Alice. A história começa falando de um sonho dela, e sonho é uma das manifestações do inconsciente. No sonho há deslocamentos e condensações, junção de realidade com fantasia, o tempo presente, passado e futuro também se misturam, quem é já não é mais, você estava lá mas logo parecia estar em outro lugar… e por aí começa a nossa viagem.
Alice sonha com o país das maravilhas, nesse país pessoas estranhas, engraçadas, boas e más representam as pessoas do mundo real. E ela passa de sua infância até se tornar jovem adulta sonhando o mesmo sonho repetidas vezes. “É sempre o mesmo!” diz ela, e é claro que é! Porque aquele sonho estava representando o posicionamento dela perante a vida, dizia de quem era Alice até aquele momento. Alice costuma se assustar com esse sonho, mas quem não se assustaria ao entrar em contato com os próprios fantasmas? Mesmo que eles venham revestidos de castelos e jardins encantadores, bolinhos mágicos e roupas maravilhosas…
Mas quando Alice se vê convocada pela realidade a responder por algo que determinará seu futuro, ela responde fugindo… Seguir o coelho significou tempo para pensar, buscar uma possível resposta para seus impasses, pois já não podia suportar o peso de tais demandas daquela sociedade. É aí que cai no buraco e mergulha no próprio inconsciente.
Entendo que a lagarta Absolem representa bem a figura do analista que supostamente deteria a resposta que poderia ajudá-la. No primeiro encontro entre Alice e Absolem ele não dá a resposta que esperam dele, mas intervém questionando quem Alice diz ser. O objetivo é direcionar Alice para construa um saber sobre si mesma, que até então ela “não sabia que sabia”, pois ao mesmo tempo que afirma durante toda a história que aquele sonho é dela, não sustenta perante o outro que é a Alice certa, portanto no fundo “sabia” que se trata de seu inconsciente, mas não tinha se dado conta do significado de tudo aquilo.
Durante sua aventura pelo inconsciente Alice vai se deparando com muitos impasses e aos poucos vai se reposicionando. Veja se não é exatamente isso que acontece quando alguém procura uma análise. Há uma suposição de que o analista sabe mais sobre o analisante do que ele mesmo, e é essa suposição que sustenta a difícil tarefa de se analisar. O analista não tem as respostas, ele possui um método para ajudar a analisante a manter-se na direção da cura.
Alice começa a tomar decisões por si mesma, ela decide ir para o castelo da Rainha Vermelha resgatar o Chapeleiro, enfrenta a Rainha e Capturandam para pegar a espada Vorpal e escapa.
A caminho do final da história observamos outro ponto do inconsciente, as repetições. Situações que se repetem, que são semelhantes na vida dizem de algo do inconsciente da pessoa. Alice se vê novamente repetindo a mesma resposta quando se sente convocada a posicionar-se perante os outros, sai correndo, foge… A Rainha Branca enfatiza dizendo a ela que não pode viver a vida para agradar aos outros, a escolha tem que ser dela, porque quando for enfrentar a criatura terá que ir sozinha.
Alice faz então uma última “sessão de análise” com Absolem, e finalmente consegue verbalizar quem ela é ou gostaria de ser. Filha do seu pai, aquela que nada a deterá frente aos seus projetos. Os significantes maluca e Alice errada também foram resignificados. Ser maluco, é agora estar entre as melhores pessoas e ser a Alice errada passou a ser o certo dela, afinal não só no mundo subterrâneo ela era a Alice errada, no mundo real perante o olhar do outro também era, pois deixava de usar o corpete porque era um bacalhau, não usava meias compridas, imaginava novas formas de organização para sociedade, trocando em sua cabeça as roupas dos casais no baile, sonhadora e a pensava demais. Alice tem o insight de que aquilo tudo não era sonho, eram lembranças, algo que retornava, e que para parar de insistir era preciso transformar.
Depois da batalha final com o Jaguadarte Alice retorna ao mundo real, recusa casar-se de forma arranjada, e se reposiciona calmamente e sem drama frente a cada um, e daí parte em busca dos seus projetos. Para ser a mulher que ela quer ser. Deixou de ser Alice, aquela que não “mata”, para Alice, aquela que “matará” se for preciso. E se para aquela sociedade e cultura Alice era tomada como louca, então era preciso sustentar a loucura. E quando achasse que seu impasse era maior do que poderia dar conta, bastava se lembrar de seis coisas que considerava impossíveis em sua vida, mas que aconteceram.
A mensagem chave transmitida no filme, trata-se de um ponto crucial também para a psicanálise. Porque o ser humano sofre? Sofre porque deseja que sua demanda de amor e reconhecimento seja respondida pelo outro, precisa disso porque ao mesmo tempo só consegue reconhecer-se através do olhar e do discurso do outro. Sofre por desejar o que é desejo do outro, não quer que o outro faça o que pede, mas quer que o outro queira fazer o que lhe pede. Alice sofria porque não conseguia ser aquilo que demandavam dela, logo não se sentia reconhecida e aceita, e ao mesmo não conseguia sustentar quem ela era e suas escolhas para não desagradar o outro.
Absolem no início não poderia simplesmente explicar isso a Alice? Apenas dar a solução mágica para ela? – não crie expectativas sobre o outro Alice! Não se importe com o que os outros pensam sobre você Alice! Coloque-se em primeiro lugar Alice! Você é forte o bastante Alice! Tais lições podem ser encontradas em diversos livros de auto-ajuda, mas saber disso definitivamente não resolve!
O que fazer então? Há várias saídas, e entre elas pela psicanálise é preciso vivenciar, passar pela experiência de fala em análise e situações na vida. Desmistificar pensamento s distorcidos, descobrir a controvérsia de nossos posicionamentos, construir por si mesmo, protagonizar. Só assim é possível separar-se e deixar de depender dos significantes que o Outro dá a nosso respeito e que sem ter outra escolha, compramos.